sexta-feira, 29 de junho de 2007

Vivo e não represento

Saíste. Bateste a porta com aquela força que te conheço. E assim se passou mais uma noite igual a tantas outras! Não perguntaste se dormi bem, não elogiaste o meu novo corte de cabelo e esqueceste-te de reparar que mudei os cortinados da sala. Coisas que podem parecer tão simples, mas que fazem tanto a diferença!

Já não me lembro da última vez que olhaste para mim. Viver neste silêncio ensurdecedor mata cada porção daquilo que sou ou do que alguma vez fui quando sabias quem eu era.
Vives cercado de cigarros, de negócios e reuniões que inventas noite fora e eu, impavidamente, dou por mim a convencer-me de que é verdade. Depois chegas, bebes mais um whisky nesse teu ar aristocrático que me cativou e deitas-te ao meu lado enquanto percorres o meu corpo com a tua mão. Um toque frio, desapegado de sentimentos, mas recheado de desejos mundanos. Estranhamente tocas-me e eu tenho sempre aquela sensação ingénua de que vais amar-me como em tempos. Como fizeste, um dia, antes de fechares o teu coração ao meu.
Sinto a tua respiração ofegante e o calor do teu corpo em mim. Amas-me à tua maneira. Intensa. Quente. Fugaz. Carnal. E eu, apaticamente, espero que descubras o prazer de mais uma noite. Inevitavelmente deixo escapar uma lágrima e em silêncio choro convulsivamente. Choro porque me amas pelo que te dou. Porque ignoras o que sou. E dou por mim a abandonar sentimentos, emoções e sensações que ainda me povoam. Tu não mereces!
Enoja-me o teu ar saciado quando te diriges para a janela e fumas mais um cigarro, naturalmente. Humilhas a minha dignidade. Matas o respeito que pode ainda existir e aniquilas a minha vontade constante de te amar sinceramente.
Esta distância torna-nos desconhecidos e alimenta o abismo que nos separa. Isto não é viver. É representar.

Gosto que o pano se feche. Porque lá posso amar. Lá os desconhecidos conhecem-me, amam-me pelo que sou e desejam-me, todos os dias, com o mesmo entusiasmo por um prazer saudável que tanto gosto de lhes provocar... porque lá eu vivo e não represento!

quarta-feira, 20 de junho de 2007


“Põe o chapéu antes de ires lá para fora.”, dizia ela no seu papel de avó ternurenta que tão bem desempenhava.
E eu agarrava nas bonecas, nos vestidos. Pegava nos sonhos e na sede de brincar e corria para o jardim onde inventava um mundo à minha maneira.
As horas passavam sem que eu me apercebesse. Estava tão embrenhada nas minhas coisas. Era bom sentir o cheiro a terra, tocar na relva, brincar na água. Era bom poder sujar-me, gritar e correr desafogada de poluições e de uma cidade de correrias e sufocos. Ali vivia à vontade, com vontade!
Podia soltar-me, deixar de ser a menina de colégio enfiada entre mil e uma actividades. Podia esfolar os joelhos porque ninguém ia criticar as feridas por baixo da saia plissada. Enterrar as mãos na terra e sentir-me irmã da natureza. As coisas tinham cheiro próprio, sabores característicos que nunca esquecerei. Falavam e sentiam como eu. Havia uma essência que não encontrava na minha cidade. Lá as pessoas pareciam estranhos, não sentiam e não falavam.
Como é bom viver aqui e sentir vida à minha volta!
E depois vinha o lanche. O cheiro a biscoitos e a bolachas de chocolate invadia-me os sentidos com força e alento que ainda hoje consigo sentir. E eu comia, degustava cada pedaço de meiguice enquanto o sol quente fazia o favor de me torrar a pele com toda a delicadeza.
Ali não custava viver! Só pesava estar longe… aprendi tanto, cresci ainda mais!

É por isso que me entristece ver estes meninos citadinos envolvidos em betão e cimento, num corre-corre eufórico desprendido de vida! É por isso que vou querer saber dizer “ponham o chapéu antes de irem lá para fora!”…