domingo, 28 de junho de 2009

Piso 4, internamento


Tinha chegado o dia. Saí de casa movida por um misto de sentimentos. Se por um lado tinha a certeza que ia fazer o que queria, por outro havia uma grande responsabilidade a assumir. Fiz o meu caminho pedindo baixinho que soubesse estar à altura do desafio a que me propusera. Às vezes perguntava-me porque é que me tinha metido nisto, outras pensava que esta é sem dúvida alguma a minha missão. Não era a primeira vez que para ali me dirigia mas assim parecia, talvez pelo inesperado, talvez por já ter alguma consciência do que podia esperar.
“Piso 4, internamento”. Todo o nervosismo que sentia desapareceu. Não me perguntem porquê mas ali respira-se uma serenidade contagiante. Ali, entenda-se o serviço de Cuidados Continuados e Cuidados Paliativos do Hospital da Luz. Sempre tive um desejo imenso de fazer voluntariado numa unidade de saúde deste tipo e depois de muita formação, decidi que este era o momento certo.
Era o meu segundo dia...
Cumprimentei a equipa e fui conhecer a minha companhia daquela manhã. Vou chamar-lhe Joana. Pediram-me que a levasse a dar uma voltinha para desentorpecer as pernas. Fizemos um corredor imenso em silêncio, a Dª Joana não era fácil de conquistar. Estava ali internada por febres altas de origem desconhecida e desconfiava-se que havia um historial psiquiátrico, informações importantes para poder saber com o que contar mas que depois tento esquecer. Para mim o que ali existe é o encontro de duas pessoas que se cruzam na conquista de uma intimidade partilhada. Sentámo-nos, ao fundo, na sala de estar a ver as vistas respeitando o silêncio e a compasso de espera que a Dª Joana impôs. “Trabalha aqui a menina?”, “Não, sou voluntária e vim fazer-lhe um bocadinho de companhia. Pensei que ia ser bom para si!”, “Ah, muito bem” e voltou a olhar pela janela. Sabia que não ia ser fácil, mas eu tinha tempo. Depois de alguns minutos, olhou-me de lado e perguntou “Então e trabalha onde?”, “Ainda não trabalho, estou a estudar...”, “E estuda o quê?”, “Psicologia.”, “Ah, muito bem”. Não podia exigir-lhe que gostasse de mim com a mesma rapidez com que nos conhecemos. Afinal de contas eu era uma estranha e com a minha pouca experiência de vida o que é que poderia ter para lhe oferecer?! Esperei que quisesse estar comigo e não demorou muito, “Tenho um sobrinho que também se formou em Psicologia e por acaso já está a trabalhar.”. Depois seguiu-se uma conversa sobre a sua família e as suas formações profissionais e um interrogatório sobre mim; falámos sobre inteligência, esforço e trabalho, da importância da perseverança e do mercado de trabalho, mas nunca tocando na Dª Joana. Depois de um silêncio prolongado, olhou-me nos olhos e disse no decorrer da conversa anterior “Eu conheço a Universidade Nova... muito boa... também andei lá...”. Claro que isto exigia que lhe perguntasse porquê, “Então e a Dª Joana fazia lá o quê?”, “Estudava... Sabe? Formei-me em Literatura. Gostava muito! E fui professora, foram tempos muito bons...” e a conversa não mais acabou. Deixei que a Dª Joana comandasse a nossa relação e dei-lhe o tempo que me foi pedindo nos seus silêncios para me deixar fazer parte do seu espaço. Falou-me da sua vida de professora, das pessoas que conheceu, da vida de estudante, dos trabalhos escolares que fez, dos seus 20 valores esforçados e merecidos num trabalho sobre poesia do séc. XVII, dos seus alunos... Contou-me de onde era e do que fazia até a doença lhe trair as forças e relembrou num olhos saudosos e brilhantes as viagens que fez. Mostrou-me Jerusalém, Londres e Roma nas suas descrições apaixonadas e explicou-me a história, as culturas e as vivências de outras cidades. E por entre sorrisos, risos e trocas de experiências e poesias chegou a hora de almoço. Pediu-me que a acompanhasse para ver se comia mais qualquer coisa porque “não come nada” dizia a auxiliar sua amiga. Não sei se foi pela companhia, se por se sentir satisfeita ou ter fome, mas a Dª Joana comeu tudo. Um almoço bem serviço e apetitoso, capaz de cativar o estomâgo mais preguiçoso.
A sala de refeições é ponto de encontro de utentes desconhecidos que se cruzam. Alguns acompanhados pela família, outros sozinhos ou com a ajuda dos profissionais, mas todos, que o queiram ou possam, têm direito à sua refeição longe do quarto.
Foi nessa mesma sala de refeições que conheci a Esperança (gosto de chamá-la assim!)... Baixinha, muito muito magra, de uma cor de pele diferente e sem cabelo denunciando-lhe uma doença oncológica. Um doce de senhora! Não nos falámos, mas fiquei a observá-la do meu lugar e sabem? Não sei se são as drogas, os cuidados médicos e de enfermagem ou a excelente qualidade do serviço que têm um papel importante nestes casos, mas para mim o ingrediente principal chama-se amor e dedicação. É verdade! Ali há pessoas, não há doentes. Ali todos são tratados pelo seu nome ou como gostam e sempre foram tratados, a Dª Catarinha, o Sr Coronel, a Tia Mi... Ali médicos, enfermeiros, psicológos, terapeutas, auxiliares trabalham unidos e sem guerras nem hierarquias pomposas, todos são essenciais. Ali há abraços, beijos, toques. Há música, leitura, silêncios e desejos que se realizam. Há, de doentes e famílias, lágrimas que se amparam, medos que se ouvem e legitimizam. Chamam-se as coisas pelos nomes, sabe-se que não há curas milagrosas. Mas não há falsas esperanças, proporciona-se qualidade de vida ao tempo que se tem e oferecesse amor e dedicação de braços abertos. Não creio que a Esperança estivesse tão agarrada à vida se não tivesse aquele beijo (como eu vi) sem medos numa cabeça careca que comunica ao mundo a maldade que dela se apoderou.
Ali cala-se a dor e apazigua-se o sofrimento... “Sr Fernando, ela hoje está calma e parece estar bem. Mas tivemos de entubá-la de novo porque de manhã expulsou o tubo.”, “Srª Enfermeira diga-me só uma coisa, magoou-a?”, “Não Sr Fernando. Ela colaborou e ninguém a aleijou.”, “Então nada mais me importa!”, dá-lhe a mão e olha-a ternamente. Como se a força daquele amor conseguisse chegar onde a voz não conseguesse porque a lucidez já abandonou aquele corpo há muito tempo. Haverá melhor remédio?
Ali e em qualquer parte do mundo, acredito que o amor vai ser sempre capaz de chegar onde nada mais conseguirá e que, mesmo sabendo o nosso fim, é essa força que dará vida à alma de cada um de nós.
Foi assim que voltei para casa com a certeza de que quero continuar neste caminho e que cada dia será uma nova lição!

Sem comentários: